Cristiney C. Campos
“Acho que não ficamos cegos. Acho que sempre fomos cegos.
Cegos apesar de conseguirmos ver.
Pessoas que conseguem ver, mas não enxergar.”
O filme “Ensaio sobre cegueira” começa num ritmo acelerado, com um homem que perde a visão de um instante para o outro enquanto dirige. Mergulha em uma espécie de névoa assustadora. Aos poucos, todos acabam cegos. À medida que a doença se espalha, o pânico e a paranóia contagiam a cidade. As vítimas dessa nova epidemia, a “cegueira branca”, são cercadas e colocadas em quarentena num hospício caindo aos pedaços.
Os serviços do Estado começam a falhar. A passagem do tempo assim como a decadência do hospício são retratadas de maneira dinâmica, através das imagens dos corredores cada vez mais tomados por lixo e detritos. Isso acaba funcionando como uma metáfora do estado de espírito dos personagens. A comida cada vez mais escassa, uma nova “ordem de poder” é criada e as regras do jogo são impostas por um dos cegos que se auto-proclama “rei” e exige “oferendas” de seus “subordinados” em troca dos “favores concedidos” ( comida ).
Ali naquele lugar, papéis e status sociais bem como quaisquer semelhanças com a vida cotidiana desaparecem. Os vários seguimentos da sociedade são reduzidos a nada e os meros seres humanos são levados a lutar por suas necessidades básicas, expondo seus instintos primários. Como “primatas” lutam pela sobrevivência em um universo desconhecido e isento das facilidades tecnológicas. São apenas “animais” que acreditam saber “pensar”.
Ironia ou presente do destino, apenas uma mulher que não é contagiada (a mulher do médico), mas que no entanto finge estar cega para ficar ao lado de seu amado marido. Armada com uma coragem cada vez maior, ela suporta desde a traição do mesmo até o “estupro” coletivo promovido pelo rei e comparsas. Passa a liderar uma improvisada família de sete pessoas , atravessando o horror e o amor, a depravação e a incerteza, com o objetivo de fugir do hospital e seguir pela cidade devastada, onde eles buscam uma esperança. A jornada da família lança luz tanto sobre a perigosa fragilidade da sociedade como também no exasperador espírito de humanidade.
O que podemos abster é que o foco da obra cinematográfica não é desvendar a causa ou a cura da doença (o que pode incomodar um pouco), mas revelar o desmoronar de uma sociedade que, perde tudo o que considera “civilizado”. Paralelo a esse colapso da civilização, um grupo de internos tenta reencontrar a humanidade perdida. O brilho branco da cegueira ilumina as percepções das personagens e a história torna-se não apenas um registro da sobrevivência física das multidões cegas, mas, também, dos seus mundos emocionais e da dignidade que tentam manter.
A tese sustentada pela obra é de que as pessoas já viviam num estado de cegueira antes mesmo de perderem a visão. Nesta sociedade imperfeita em que vivemos, é justamente nossa visão que muitas vezes nos cega para o que realmente importa, distorcendo opiniões em função de preconceitos que, ao manterem nosso foco no superficial (a cor da pele, a orientação sexual, a etnia) impedem que enxerguemos o real valor daqueles que nos cercam.
Somente com a perda da capacidade do pré-julgamento nos tornamos realmente capazes de estabelecer uma conexão verdadeira com o mundo ao nosso redor. A única cura possível para este isolamento auto-imposto, “a cegueira”, é o reconhecimento de que os humanos dependem profundamente uns dos outros e que “enxergar o próximo” é um exercício de tolerância e amor.
A exemplo disso, temos a cena em que um dos inúmeros personagens sem visão reclama dos abusos cometidos pelo inescrupuloso Rei e comenta, com o companheiro à sua frente, que o sujeito provavelmente é negro, escancarando seu odioso racismo. A beleza desta cena, além da ironia dramática, reside na força de sua alegoria: esse personagem não consegue se dar conta de que, ao contrário do vilão, é seu confidente quem possui o tom de pele que ele tanto parece desprezar.
Ainda dentro da lógica da temática apresentada, pode-se observar o fato de que os personagens não têm nome. São identificados apenas por suas profissões (o Médico, o Contador), por suas relações mais significativas (a Mulher do Médico) ou por suas características mais marcantes (o Garoto Estrábico). Irônico, pois é justamente assim que costumamos definir, de maneira simplista e injusta, aqueles que nos cercam.
A produção é bela, apesar das muitas alfinetadas dos especialistas, e consegue transpor para o universo audiovisual uma parcela interessante da obra de José Saramago. É claro que há perdas com relação à literatura original, o que não chega a comprometer seriamente o excelente trabalho de Meirelles.
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