sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Império de Luz

Cristiney C. Campos

Acho que não ficamos cegos. Acho que sempre fomos cegos.

Cegos apesar de conseguirmos ver.

Pessoas que conseguem ver, mas não enxergar.

O filme “Ensaio sobre cegueira” começa num ritmo acelerado, com um homem que perde a visão de um instante para o outro enquanto dirige. Mergulha em uma espécie de névoa assustadora. Aos poucos, todos acabam cegos. À medida que a doença se espalha, o pânico e a paranóia contagiam a cidade. As vítimas dessa nova epidemia, a “cegueira branca”, são cercadas e colocadas em quarentena num hospício caindo aos pedaços.
O
s serviços do Estado começam a falhar. A passagem do tempo assim como a decadência do hospício são retratadas de maneira dinâmica, através das imagens dos corredores cada vez mais tomados por lixo e detritos. Isso acaba funcionando como uma metáfora do estado de espírito dos personagens. A comida cada vez mais escassa, uma nova “ordem de poder” é criada e as regras do jogo são impostas por um dos cegos que se auto-proclama “rei” e exige “oferendas” de seus “subordinados” em troca dos “favores concedidos” ( comida ).
Ali naquele lugar, p
apéis e status sociais bem como quaisquer semelhanças com a vida cotidiana desaparecem. Os vários seguimentos da sociedade são reduzidos a nada e os meros seres humanos são levados a lutar por suas necessidades básicas, expondo seus instintos primários. Como “primatas” lutam pela sobrevivência em um universo desconhecido e isento das facilidades tecnológicas. São apenas “animais” que acreditam saber “pensar”.
Ironia ou presente do destino, apenas uma mulher que não é contagiada (a mulher do médico), mas que no entanto f
inge estar cega para ficar ao lado de seu amado marido. Armada com uma coragem cada vez maior, ela suporta desde a traição do mesmo até o “estupro” coletivo promovido pelo rei e comparsas. Passa a liderar uma improvisada família de sete pessoas , atravessando o horror e o amor, a depravação e a incerteza, com o objetivo de fugir do hospital e seguir pela cidade devastada, onde eles buscam uma esperança. A jornada da família lança luz tanto sobre a perigosa fragilidade da sociedade como também no exasperador espírito de humanidade.
O que podemos abster é que o foco da obra cinematográfica não é desvendar a causa ou a cura da doença (o que pode incomodar um pouco), mas revelar o desmoronar de uma sociedade que, perde tudo o que considera “civilizado”. Paralelo a esse colapso da civilização, um grupo de internos tenta reencontrar a humanidade perdida. O brilho branco da cegueira ilumina as percepções das personagens e a história torna-se não apenas um registro da sobrevivência física das multidões cegas, mas, também, dos seus mundos emocionais e da dignidade que tentam manter.
A tese sustentada pela obra é de que as pessoas já viviam num estado de cegueira antes mesmo de perderem a visão. Nesta sociedade imperfeita em que vivemos, é justamente nossa visão que muitas vezes nos cega para o que realmente importa, distorcendo opiniões em função de preconceitos que, ao manterem nosso foco no superficial (a cor da pele, a orientação sexual, a etnia) impedem que enxerguemos o real valor daqueles que nos cercam.
Somente com a perda da capacidade do pré-julgamento nos tornamos realmente capazes de estabelecer uma conexão verdadeira com o mundo ao nosso redor. A única cura possível para este isolamento auto-imposto, “a cegueira”, é o reconhecimento de que os humanos dependem profundamente uns dos outros e que “enxergar o próximo” é um exercício de tolerância e amor.
A exemplo disso, temos a cena em que um dos inúmeros personagens sem visão reclama dos abusos cometidos pelo inescrupuloso Rei e comenta, com o companheiro à sua frente, que o sujeito provavelmente é negro, escancarando seu odioso racismo. A beleza desta cena, além da ironia dramática, reside na força de sua alegoria: esse personagem não consegue se dar conta de que, ao contrário do vilão, é seu confidente quem possui o tom de pele que ele tanto parece desprezar.
Ainda dentro da lógica da temática apresentada, pode-se observar o fato de que os personagens não têm nome. São identificados apenas por suas profissões (o Médico, o Contador), por suas relações mais significativas (a Mulher do Médico) ou por suas características mais marcantes (o Garoto Estrábico). Irônico, pois é justamente assim que costumamos definir, de maneira simplista e injusta, aqueles que nos cercam.
A produção é bela, apesar das muitas alfinetadas dos especialistas, e consegue transpor para o universo audiovisual uma parcela interessante da obra de José Saramago. É claro que há perdas com relação à literatura original, o que não chega a comprometer seriamente o excelente trabalho de Meirelles.

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